Ninguém emagrece efetivamente sem reorganizar a vida e preparar-se para este evento. Emagrecer e ficar magro é uma condição que exige competência para lidar com a força imposta pela nova imagem corporal adquirida através do tratamento.
Martins – 1994

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Vocação do milagre!


Papo Cabeça com Miguel Machado

Que valor atribuímos ao milagre e de que forma ele permeia a busca pelo emagrecimento?


Miguel Machado : Nos primeiros dias deste mês, setembro de 2011, a revista Veja publicou uma matéria de capa alardeando o potencial aparentemente milagroso de um novo medicamento. Chamado tecnicamente de liraglutida e comercialmente de victoza, o novo fármaco foi desenvolvido para auxiliar o tratamento da diabetes tipo 2. Ocorre que, na reportagem de Veja, o que fica patente é a grande vocação do victoza não tanto para combater esta doença quanto para servir no front da guerra contra o sobrepeso.
Deixando de lado os aspectos técnicos bem como a legítima polêmica médica, é curioso notar que o nome comercial deste medicamento une – coincidentemente? – a raiz latina do substantivo vitória e do qualificativo vencedor com um sufixo homófono ao sufixo osa, muito conhecido em adjetivos associados ao sucesso pessoal, como os bastante populares gostosa, maravilhosa, poderosa. Boa oportunidade para se criarem bordões...
Hipóteses subliminares à parte, o fato é que cada vez mais pessoas buscam emagrecer ou conservar a silhueta esquecidas de que o emagrecimento é menos uma questão de esquemas corporais do que de vivência ou experiência corporal. Para elaborar um esquema real ou um mapa fiel do que somos corporalmente (nos espectros físico, psíquico e espiritual) é preciso, antes, imergir, cognitiva e afetivamente, na vida deste corpo. Será o entendimento existencial ou a contemplação amorosa desta vida aquilo que a poderá unificar, diminuindo a influência ou o peso que esses esquemas, fragmentados e excessivamente heterônomos, têm sobre ela.
De maneira que o verdadeiro alvo da matéria de Veja não é aquela mulher e aquele homem que mais ou menos compreendem as contradições humanas, buscando transcendê-las à medida que as discernem e assumem. Não. A meta da reportagem é influenciar aqueles para os quais transcender significa – consciente ou inconscientemente – duas coisas: primeiro, endinheirar-se; segundo, saber-se elegantemente magro (ou gostoso, maravilhoso, poderoso, etc.). Na sociedade midiática de hoje, alcançar estas condições é o mesmo que atingir uma categoria similar a de iluminado ou de grande desperto. Aquele que as alcança torna-se uma espécie de mentor, amealhando seguidores cada vez mais deslumbrados com este “milagre” que é “ser” rico e magro num planeta de gente que ou é pobre ou é gorda ou teve a infelicidade de “ser” as duas coisas.
Não é difícil perceber que esta separação entre os tipos “vencedor” e “fracassado” está sendo vivida de maneira cada vez menos clara, vindo daí a necessidade de aplicar estes esquemas de forma mais e mais apressada. Esta rapidez em estereotipar nos ilude, fazendo-nos crer que nossos critérios de julgamento e percepção da realidade estão funcionando bem quando na verdade estão bastante prejudicados. Se isto é socialmente ruim, psicologicamente é arrasador. Afinal, parafraseando Lincoln, ninguém consegue enganar-se totalmente o tempo todo, o que significa que cada sujeito sabe da injustiça que cotidianamente comete consigo mesmo e com os outros; sabe que está cobrando dos outros o que não faz a si mesmo. Ele sabe, mas porque de fato não percebe nada claramente, não entende por que suas boas intenções tão facilmente se transformam no mal que elas desejam evitar.
O que fazer, então, quando tudo que tentamos parece fracassar, incluindo os esforços para emagrecer? É importante começarmos aqui por modificar a pergunta, substituindo o verbo fazer pelos verbos pensar e sentir. Começaríamos, portanto, por perguntar: o que pensar frente ao malogro? O que sentir diante do fracasso? Notem que a mudança dos verbos revela a necessária correção da perspectiva. No primeiro caso, trata-se de encontrar uma razão ou um sentido para o sofrimento subjacente; no segundo, de viver este sentido, experienciando-o de formas diversas – eis a função precípua da psicoterapia – e assim desenvolvendo, aos poucos, uma espécie de razão sensível, orgânica, não apenas técnica mas ôntica ou ontológica (Paul Tillich), capaz de ir integrando os esquemas errantes – do sucesso e do fracasso, da riqueza e da pobreza, do ser gordo e ser magro, etc. – que, dissociados, estimulam as sensações em prejuízo dos sentimentos e nutrem o clima de opinião em detrimento da necessária maturação das ideias. Em outras palavras, a fragmentação dos esquemas reforçará nossas divisões sempre que tentarmos fazer algo antes de sentir e pensar este fazer.
Sinto e penso, deste modo, que precisamos redistribuir a energia empregada em ações pouco meditadas, procurando ampliar o investimento na lucidez ou no alcance – isto é: na qualidade – da nossa reflexão. Uma pessoa que sofre de quilos a mais não deve, por exemplo, aceitar de antemão e sem o devido discernimento a percepção imediata de que o esquema “gorda” é aquele que, na hora H, vai explicá-la e resumi-la. Se ela sente que é assim, se sofre com isto, então ela não deve fazer nada impulsivamente, devendo, antes, explorar o potencial deste sentir e deste sofrer, apreendendo-os a partir e para além da dor que eles traduzem. Diria o formulador da Psicologia Integral, Ken Wilber, que o sofrimento colhido no processo de diferenciação/reestruturação pessoal deve ser assumido e integrado em vez de recusado e reprimido.
Para emagrecer de fato, com o tempo e consistentemente, é mister tirar o emagrecimento stricto sensu de foco, focalizando em seu lugar – e em seus momentos – aqueles aspectos da experiência física, psíquica, social e cultural que fazem dele uma questão emergente – e, em muitos casos, urgente. O verdadeiro milagre não ocorre casualmente, mas pressupõe uma grande, ainda que às vezes insuspeitada, participação laborativa


Miguel Machado é Psicólogo (UNESA) e Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ).
Estuda, atualmente, a presença  do campo freudiano no desenvolvimento da Perspectiva Integral em Psicologia

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