Papo Cabeça com Miguel Machado
Que valor atribuímos ao milagre e de que forma ele permeia a busca pelo emagrecimento?
Miguel Machado : Nos primeiros dias deste mês, setembro de 2011, a revista Veja publicou uma matéria de capa alardeando o potencial aparentemente milagroso de um novo medicamento. Chamado tecnicamente de liraglutida e comercialmente de victoza, o novo fármaco foi desenvolvido para auxiliar o tratamento da diabetes tipo 2. Ocorre que, na reportagem de Veja, o que fica patente é a grande vocação do victoza não tanto para combater esta doença quanto para servir no front da guerra contra o sobrepeso.
Deixando
de lado os aspectos técnicos bem como a legítima polêmica médica, é curioso
notar que o nome comercial deste medicamento une – coincidentemente? – a raiz
latina do substantivo vitória e do qualificativo
vencedor com um sufixo homófono ao
sufixo osa, muito conhecido em adjetivos
associados ao sucesso pessoal, como os bastante populares gostosa, maravilhosa, poderosa. Boa
oportunidade para se criarem bordões...
Hipóteses
subliminares à parte, o fato é que cada vez mais pessoas buscam emagrecer ou
conservar a silhueta esquecidas de que o emagrecimento é menos uma questão de esquemas corporais do que de vivência ou experiência corporal. Para elaborar um esquema real ou um mapa fiel
do que somos corporalmente (nos espectros físico, psíquico e espiritual) é
preciso, antes, imergir, cognitiva e afetivamente, na vida deste corpo. Será o
entendimento existencial ou a contemplação amorosa desta vida aquilo que a
poderá unificar, diminuindo a influência ou o peso que esses esquemas,
fragmentados e excessivamente heterônomos, têm sobre ela.
De
maneira que o verdadeiro alvo da matéria de Veja
não é aquela mulher e aquele homem que mais ou menos compreendem as contradições
humanas, buscando transcendê-las à medida que as discernem e assumem. Não. A
meta da reportagem é influenciar aqueles para os quais transcender significa –
consciente ou inconscientemente – duas coisas: primeiro, endinheirar-se; segundo, saber-se
elegantemente magro (ou gostoso, maravilhoso, poderoso, etc.). Na sociedade
midiática de hoje, alcançar estas condições é o mesmo que atingir uma categoria
similar a de iluminado ou de grande desperto. Aquele que as alcança torna-se
uma espécie de mentor, amealhando seguidores cada vez mais deslumbrados com este
“milagre” que é “ser” rico e magro num planeta de gente que ou é pobre ou é
gorda ou teve a infelicidade de “ser” as duas coisas.
Não
é difícil perceber que esta separação entre os tipos “vencedor” e “fracassado”
está sendo vivida de maneira cada vez menos clara, vindo daí a necessidade de
aplicar estes esquemas de forma mais e mais apressada. Esta rapidez em
estereotipar nos ilude, fazendo-nos crer que nossos critérios de julgamento e
percepção da realidade estão funcionando bem quando na verdade estão bastante
prejudicados. Se isto é socialmente ruim, psicologicamente é arrasador. Afinal,
parafraseando Lincoln, ninguém consegue enganar-se totalmente o tempo todo, o
que significa que cada sujeito sabe
da injustiça que cotidianamente comete consigo mesmo e com os outros; sabe que está cobrando dos outros o que
não faz a si mesmo. Ele sabe, mas
porque de fato não percebe nada claramente, não entende por que suas boas
intenções tão facilmente se transformam no mal que elas desejam evitar.
O
que fazer, então, quando tudo que tentamos parece fracassar, incluindo os
esforços para emagrecer? É importante começarmos aqui por modificar a pergunta,
substituindo o verbo fazer pelos
verbos pensar e sentir. Começaríamos, portanto, por perguntar: o que pensar frente ao malogro? O que sentir diante do fracasso? Notem que a
mudança dos verbos revela a necessária correção da perspectiva. No primeiro
caso, trata-se de encontrar uma razão ou um sentido para o sofrimento subjacente;
no segundo, de viver este sentido, experienciando-o de formas diversas –
eis a função precípua da psicoterapia – e assim desenvolvendo, aos poucos, uma
espécie de razão sensível, orgânica, não apenas técnica mas ôntica ou
ontológica (Paul Tillich), capaz de ir integrando os esquemas errantes – do
sucesso e do fracasso, da riqueza e da pobreza, do ser gordo e ser magro, etc.
– que, dissociados, estimulam as sensações em prejuízo dos sentimentos e nutrem
o clima de opinião em detrimento da necessária maturação das ideias. Em outras
palavras, a fragmentação dos esquemas reforçará nossas divisões sempre que
tentarmos fazer algo antes de sentir e pensar este fazer.
Sinto
e penso, deste modo, que precisamos redistribuir a energia empregada em ações
pouco meditadas, procurando ampliar o investimento na lucidez ou no alcance –
isto é: na qualidade – da nossa reflexão. Uma pessoa que sofre de quilos a mais não deve,
por exemplo, aceitar de antemão e sem o devido discernimento a percepção
imediata de que o esquema “gorda” é aquele que, na hora H, vai explicá-la e
resumi-la. Se ela sente que é assim,
se sofre com isto, então ela não deve
fazer nada impulsivamente, devendo,
antes, explorar o potencial deste sentir
e deste sofrer, apreendendo-os a
partir e para além da dor que eles traduzem. Diria o formulador da Psicologia
Integral, Ken Wilber, que o sofrimento colhido no processo de
diferenciação/reestruturação pessoal deve ser assumido e integrado em vez de
recusado e reprimido.
Para
emagrecer de fato, com o tempo e consistentemente, é mister tirar o
emagrecimento stricto sensu de foco,
focalizando em seu lugar – e em seus momentos – aqueles aspectos da experiência
física, psíquica, social e cultural que fazem dele uma questão emergente – e,
em muitos casos, urgente. O verdadeiro milagre não ocorre casualmente, mas
pressupõe uma grande, ainda que às vezes insuspeitada, participação laborativa.
Miguel Machado é Psicólogo (UNESA) e Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ).
Estuda, atualmente, a presença do campo freudiano no desenvolvimento da Perspectiva Integral em Psicologia
Miguel Machado é Psicólogo (UNESA) e Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ).
Estuda, atualmente, a presença do campo freudiano no desenvolvimento da Perspectiva Integral em Psicologia
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